O peso da água
Referencia-se através de leituras em obras que retratam a relação humana com a inospitalidade do mundo (natural e social) e do entranhamento complexo que há entre tempo e memória.
ESCOLAS MULTIDETERMINADAS
Assisti ao Roda Viva com o (ex)secretário da Educação do estado de São Paulo: Herman Jacobus Cornelis Voorwald - programa de entrevista da TV Cultura e levado ao ar dia de finados próximo passado. Coerente e centrado do começo ao fim nos argumentos logísticos da proposta de reorganização das escolas, defendeu a democracia do processo porque, por ordem dele, a cada Diretoria de Ensino coube estudos na região de demanda que viabilizassem a forma do novo desenho letivo para 2016. Entretanto, por faltar nesse plano o debate com aqueles que produzem, segundo ele à Rádio CBN, os vergonhosos resultados de desempenho, houve inesperada mobilização estudantil. Creio que de todas e tantas múltiplas condições que sustentam os indicativos de péssima qualidade de ensino e formação na educação escolar pública, a mim, a expressão mais relevante e revelante esteve e está no modo de condução do conflito manifesto, pois que latente o problema já era sofrido e sabido há décadas. Acho impressionante a calma de dentes cerrados permanente do governador, racionalizando palavras de incentivo ao diálogo quando se contrapõem ao discurso dele as diversas imagens de agressão e truculência da ação policial. Quando o que se diz se distancia do que se faz, quando o fazer não considera os dizeres de quem recebe a ação, temos sim uma crise de segurança.
VIDA
SOBRE AS COMPARAÇÕES: A tragédia da Boate Kiss aconteceu por negligência e não foi diferente com a barragem de Mariana, ambos crimes por omissão, desatenção arrogante aos princípios mínimos da engenharia de segurança. O ataque terrorista foi plano articulado, pautado por ignorância político-religiosa. Nos delitos aqui praticados, os responsáveis furtam-se à culpa, nos de Paris, há júbilo da organização que os causou. O que iguala tudo é que, por caminhos diferentes, a verdade do valor maior: a vida... não encontra amparo na razão ilustrada. "O mal é banal".
O DISCURSO DO MÉDICO
O leitor mais familiarizado com a filosofia, talvez, há boa chance, perceba a parecença do nome destes escritos com aquele que Descartes popularizou. A lição de anatomia de Rembrandt também poderia ser revisitada, imagem de horror e ciência eternizada pelo contraste. Não, não se trata de mostrar erudição, ela pouco valerá. Acontece, e este verbo é mal usado, ser a vida travessia complexa demais para que um ser humano, mesmo o mais espirituoso, seja por ela agraciado a entendê-la, dispondo a todos no mesmo plano da ignorância, embora a capacidade de amar apresente-se em grande escala a partir da nulidade.
O consultório não era imponente, a entrada num caminho de cacos de cerâmica antiga ladeado de muro baixo e curvo, um jardim dos mais descuidados e gente de roupas surradas realizando reformas. Pé direito baixo aquele para a sala de espera com poltronas negras duas a duas destacadas com o branco das paredes. Pairavam pessoas em silêncios e cochichos lado a lado; perceptível se acomodarem ao que a história cuidou de alinhar, nascido o lugar dos assentos em função da necessidade do doente ter a referência próxima de um familiar.
Ao lado dela, destinou-se a mim a companhia: minha mãe. As duas demais filhas distantes em outro par escondido de sofás pela esquina dos cômodos conjugados do ambiente. Meu telefone toca e um problema escolar nascido da loucura de gente louca, o que é digno, me é descrito e solicitado à orientação, acusando o detalhe de que sou profissional da educação. Sebastiana Aparecida Petreca Cardoso - profere a atendente jovem demais para os meandros das dores ali presentes, contudo, ofertando-lhe a juventude boa voz e dicção. Confesso: deliciei-me ao responder: “entro agora para uma consulta médica junto com minha mãe e não posso ajudar”. Momento de júbilo no qual o sem dizer, disse: nada agora me importa mais.
Na pressa de acompanhar os passos miúdos de nossa vez, entrei por último e, com o aparelho celular na mão, constrangeu-se o cumprimento ao doutor. Coloquei no silencioso e o pus na bolsa e, diante da mesa dele, vi que das duas cadeiras, uma estava vazia e nela me confortei. As irmãs sentadas em outras postadas lateralmente, numa distância considerada dali, onde se desenhava o alcance mais íntimo do inquérito clínico. Um homem grande, uniformizado no caráter da profissão, concentrado e de sentidos regulados na máxima tensão, destinava a tudo gestos comedidos e voz cautelosa, deixando entre as expressões a angústia crescente de nossos medos.
Não cabe aqui relatar as minúcias, postas incontáveis, do que se deu até o veredito. Não há para o percurso desta inflexão existencial nada mais desalentador e esvaziante. Não são as perguntas, nem o olhar demorado sobre incontáveis resultados de tomografias anteriores, o vai e vem dos humores, as mãos dele sobre o corpo solitário dela, a luta intrínseca entre as frases de esperança e de fatalidade, ambas armadas com finas navalhas. São o passado todo revisitado, o amor que nasce já flor e se confunde com a tensão aprisionada de lágrimas inconfessáveis, aquela criança que nunca deixamos de ser observando assustada de dentro da força que exige a mais dura realidade.
Sobre um aparador ladeado ao fundo, o espaço de oratório compunha arranjo harmonioso para imagens sagradas não identificadas entre plantas simples de plástico, destacando-se ao meu interesse o porta-retratos central no qual na foto se iluminava um menino de aproximadamente sete anos e cujas feições denunciavam uma diferença física inesperada para aquela alegria de criança num parque infantil. Para ele dirigi minha atenção enquanto ouvia do médico o diagnóstico muito provável de que um tumor já se avançava a pressionar órgãos, gerando aqueles desconfortos progressivos, cabendo exames e retorno urgentes para a certeza anunciada e até lá, apenas o cuidado paliativo de se aliviar a dor. Então, uma irmã acusou nossa falta por não desconfiarmos antecipadamente da manifestação capciosa dos sintomas.
O doutor então discursou: Não devemos duvidar dos designíos e da sabedoria de Deus. Sofri assim com a doença de meu filho, me culpando por não perceber algo com a devida antecedência e hoje sei que o Criador nos conduz sempre no tempo perfeito das ações, pois mesmo que duvidemos do trajeto por Ele escolhido, o correr da vida nos convencerá do amor Dele e seguiremos adiante porque nos sentimos amados.
Ao sair do consultório, notei que em momento algum proferi qualquer palavra.
LÚDICA 13
Hoje, a noite, quando ela
disser que precisa ir embora
Direi: Fica amor, há mais uma hora.
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