Referencia-se através de leituras em obras que retratam a relação humana com a inospitalidade do mundo (natural e social) e do entranhamento complexo que há entre tempo e memória.
VAMOS
Quando ela se foi,
não achei ninguém
para um abraço, e olha:
olhei em volta.
Achei sim, ela
merecia muito além
daquela citação
do Pequeno Príncipe.
Mas a cidade é pequena
e o contumaz orador,
semelhante ao médico,
fez o melhor que pode.
Tanto deixei de dizer,
mas recordo-me
quis e não o fiz
sobre o seu silêncio,
nas sessões,
nos potes de argila,
grandes cântaros
nos cantos comungados,
no quadro branco
da parede aludindo
com riscos seguros
à condição humana.
Aquela coragem
para a perturbadora
travessia do que somos.
...
Seu silêncio.
Com ele sigo.
Ora, dele me desfruto,
Ora, por vezes,
lhe dedico.
Feliz 2013
Sonhei que o fogo gelava.
Sonhei que a neve fervia.
Sonhei que ela corava,
quando me via.
(Chico Buarque)
ELA
Estamos na época da privacidade infeliz.
Todas as fotos, porém, teimam o contrário,
mas solidão verdadeira nada contém,
mesmo porque, não há como registrá-la.
E o tido como importante a corrigir,
pelos regrados insensíveis,
é casa em eterna reforma,
nas cidades jamais prontas.
Por isto a amo, amo até esquecer,
nada a mudar e o mundo vasto e infinito.
Nas noites em que todos se esvaziam,
a sua natureza simples,
vive.
PEDAGOGOS
Breve, chegará o tempo
das perdas do egoísmo tosco
pesarem afiadas sobre as almas.
Desculpas... quantas houve, pois aludiam
arte, pedagogia, boa intenção ou necessidade.
E por medo, expressavam raiva e prazos escassos.
E com ignorância, ensinavam os surdos aos berros.
E no lugar vazio da arrogante estupidez,
restarão surtadas as vergonhas
e o mais frio esquecimento.
das perdas do egoísmo tosco
pesarem afiadas sobre as almas.
Desculpas... quantas houve, pois aludiam
arte, pedagogia, boa intenção ou necessidade.
E por medo, expressavam raiva e prazos escassos.
E com ignorância, ensinavam os surdos aos berros.
E no lugar vazio da arrogante estupidez,
restarão surtadas as vergonhas
e o mais frio esquecimento.
BOCA SUJA
Nessa vida
Muitas vezes
Repare
O palavrão sacana
São mulheres
De boca amarga
E peles flácidas
De tal modo vil
Que se chega fácil
Aos ossos frágeis
Das camas pobres
Dos móveis surrados
LITORÂNEOS
Árvores escondem pássaros
recolhidos.
O ar, a fumaça dos severos
carros.
A terra, a alegria da noite
estrelada.
Amanhã, abraçado na manhã de
chuva,
o coração, o nada esconderá.
Dias são seres imprecisos.
EUROPA
Expanda mãos
Roupas de sua cama
Dunas de setembro
Anel na cor das unhas
Livro a ler e já lido
Force as janelas
Docemente
Inspire o tempo
A beleza a passeio
No mundo carecido
CACHORRO LOUCO
Não se encontra bem neste mês de
agosto. Está em paz e sereno com todos. Alcançou, afinal, aquele topo dos
quarenta anos no qual a sensatez suporta as lembranças vergonhosas, covardes,
fracas e esquisitas e estende as culpas e derrotas pelo parapeito da janela
mais alta do fingimento. Entretanto, diz-se mais: tudo funciona bem: o
intestino, o sexo, os rins, o apetite, as mãos. Tudo. E se dinheiro não possui,
pouco o aflige a falta já costumeira. Incensos de variadas intenções queimam
com as lacunas da infância e do cotidiano. O rio quando seca expõe o leito. O
leito emergente cria despertencimento severo. As águas apreciam sobrenadar.
Existe um misto de despedida e beleza nos objetos. Agosto causa
intensa parecença com a desilusão. E o mundo assim se apresenta destituído e seco,
sucumbindo ao outono. Aos poucos, nesse mês ingrato e belicoso, frui o fio
verde claro quase azul de tão leve dos cântaros de argila marrom, entre a
vigília e a perene sensação entorpecida dos que nutrem vingança e clemência.
PASSOS LENTOS
Não havia caminho para carroças ou carros de motores. A casa caiada escondida, acessível por trilhas estreitas de vacas e saúvas. Os lados do corpo em muitos trechos lambidos pelas folhas das árvores, algumas com peçonha. A clareira habitada do lugar. O chão batido, poucos móveis. Cômodos separados por paredes baixas. Caibros de eucalipto com telhado de peças desiguais, embolorado, emaranhado por fios cinzas de aranhas negras. Na sala, duas cadeiras de palha trançada, o sofá desbraçado calçado por tocos, uma espingarda antiga enferrujada sobre a travessa da porta. Nossa Senhora de olhar piedoso com os dias do ano na cal de altura aceitável e cruzada pela antena do rádio de válvulas, diagonal esticada engrossada com fezes de mosquito. Uma tália de barro cozido no canto portada ao lado da passagem para a cozinha. Tudo encardido. Um cheiro de sabão de cinza ainda precoce. Ele e a mulher. Uma criatura sempre vista com pano na cabeça, esquelética, desdentada, trincada de rugas, vestida de maltrapilhos. Conversavam raramente. O desespero calcou-lhes alienação, a pobreza: medo, a dor: fé, a solidão: devaneio. Tudo estava atrasado. A pequena horta dos fundos, lenhas dos pastos, estrumes de animais com carrapatos e piolhos, vassoura de bambulim do terreiro, milho de galinhas, fubá de porcos, unhas compridas e sujas cuidando, o remédio próximo das doenças que os acometiam, marcelinha, hortelã, mentruz, cidreira, levante, erva-de-são-joão, arruda, outros que no campo mesmo se conduziam nas sombras de alecrins. Na cozinha, o fogão esquadriado na borraça negra das fumaças, entulhado de panelas tortas de alumínio. Uma bancada ao lado com bacias e baldes para água. O poço logo ali depois do abacateiro, não muito fundo e de garganta forrada por samambaias comuns amarelo-pálidas. Uma prateleira roída de cupins com mantimentos da venda em começo de mês, arroz, feijão, óleo, gordura e sal, fósforos, utensílios e três lamparinas descansando da noite. Odor de querosene. Ele e o irmão. Um sujeito de cabeça socada, pernas encurvadas, orelhas imensas da velhice longa, um bigode ralo, um olhar miúdo, feições de macaco, surdo. Nos quartos, camas de molas e pregos pretos de vigota enfiados nos rebocos para pesos de roupas e bornás de roça. Janelas e portas de tramelas. Beirais com varas de pescar, pequenas latas de veneno, tralhas esquecidas. Tudo encardido. Todo domingo de manhã Seu Lázaro percorria o caminho de bambus, carquejas, amoras, goiabas, araçás, jatobás até que lhe fosse possível atravessar o córrego de águas e lambaris claros contrastados com o branco leite das flores doces de perfume dos lírios caetés. Seu conversar em rompantes pelo modo gutural convencido da dureza. Não muito alto, meio obeso, roupas de pontos a passos largos de agulha por fora na barra da calça, na manga da camisa, nos arremates da linha de cor desigual ao tecido. Chapéu de feltro torto na cabeça, um guarda chuva de bengala e proteção contra cobras e cachorros. Tudo o que dos três seres era belo e feio, limpo ou não, agora pouco interessa, pois tudo não existe mais.
FEIJÃO ROSINHA
Aqui, onde a serra da Mantiqueira
pende para o lado sul de Minas Gerais, gradeia-se em lugares de terra escura e
recoberta de pedras pardas de variados tamanhos e formas, enfeitando amiúde os
pés de arroz-do-diabo ou chifre-de-carneiro ou maria-leite ou capim-gordura nos pontos de erosão. No meio de pequenas laranjeiras
de folhas verde-claras e de tão novas cheirando a sulfatos, planta-se o
feijão das águas. E nasce nas primeiras chuvas do final de
setembro a plantinha de duas palmas de mãos dizendo amém. E são necessárias duas "carpas" e depois se deixa ao
tempo, se esquece... forma maior de reconhecimento da natureza. Em algum
dia na manhã, o sol é apagado por leves mantos de seda negra. Então, corre-se
para o rancho e busca-se uma peneira de arame em quadrados trançada. A peneira lembrada
em canções antigas e leitos curvos de córrego de águas limpas na qual
pululam lambaris sobre seu plano, milagres, risos consequentes. Predadora também
de girinos de pernas traseiras feitas ou não, besouros de galhos, sanguessugas, mandixingas, carás, inguilas
miúdas e tuviras de danças serpenteadas... sim, sobre ela depositam-se uma a
uma as vagens, bainhas ora rosas ora esbranquiçadas ora amarelas da leguminosa
nova cheirando a leite materno. E é uma festa aquela de crianças ao redor a
debulhá-las, cortando os fios do ventre dos bagos enquanto limpam o nariz
com costas de antebraços. E por qualquer coisa se sorri e por qualquer coisa se
briga. E não demora, a peneira está repleta e pesada de grãos granados, úmidos
e o carinho deles no vão dos dedos é suave. Brincadeira de imitar o tempo.
DISCURSOS SOBRE BULLYING
Em favor de uma Educação para a coragem.
“Não existe ninguém tão grande para quem seja uma desonra estar
sujeito às leis
que regem com igual rigor a atividade normal e a atividade
patológica”.
FREUD, “Leonardo da Vinci e uma
lembrança de sua infância”.
Dirijo
estas singelas reflexões para pais e educadores e leitores outros. Peço a
gentileza de compreenderem, entretanto, que toda vez que aparecer a palavra
“Escola” neste texto, refiro-me a qualquer instituição séria, bem organizada, com
profissionais engajados e experientes, de base curricular e didática esmerada,
com cuidadosas avaliações e bons resultados, inovadora, com instrumental seguro
para acompanhar os movimentos estudantis cotidianos, de história reconhecida, enfim,
de alto nível. Posto isto, vamos aos meus argumentos.
O
respeito vem de berço, aquilo que se aprende em casa, na família. Não é papel
da Escola ensinar esta virtude moral e sim lapidá-la no âmbito móvel, porém estrito,
de suas responsabilidades. Em se tratando de filhos supostamente “bullyinados”,
os discursos e posturas de diferentes pais em ocasiões distintas muitas vezes,
infelizmente, apresentam intensa agressividade dirigida aos profissionais escolares.
Isso me chama a atenção, mas não me assusta, pois a “loucura” carece de originalidade.
Pensando nas relações entre aqueles que
usufruem um serviço comum, lugares de convivência variados são isentos de
ameaças de processo judicial por parte dos pais quando há conflitos do rebento
com os demais clientes. A Escola não se encaixa nesta isenção, pois, segundo
eles, seria obrigação dela antecipar-se e prever, lendo corretamente os sinais
do futuro terremoto. E porque supostamente não o fez, muito provavelmente será
acusada de possuir profissionais mal treinados, diretores e coordenadores omissos
e desprovidos de iniciativa e falhos na condução dos subordinados. Qual a
função ideológica desta fala revoltosa? Ao que me consta, a raiva é filha do medo. Enquanto
se violenta a Escola, negam-se quais temores?
“Bullying”, palavra nova para algo tão
antigo, gerou um discurso politicamente correto e uma moda pseudo-teórica para
sustentá-lo, achando que assim criticará profundamente a instituição mais
importante da sociedade para a transmissão do capital cultural, destacando para
esta missão especialistas de caráter duvidoso através de veículos e programas
de comunicação, muitos deles também igualmente duvidosos, a desfiar a ladainha
maçante de como são a dinâmica, os agentes e as formas de constatar e prevenir.
Desculpem-me pela lembrança, mas Escola
é lugar da autoridade de pedagogos e educadores. E quando penso na complexidade
conceitual, histórica, metodológica, técnica e prática inerente aos estudos de incontáveis
autores renomados de Psicanálise, Psicologia Genética, Psicologia da Gestalt,
Psicologia Analítica, Psicologia Social, Psicologia Humanista, Psicologia
Sócio-Histórica, Daseinanálise, Filosofia e História da Educação, Didática,
Metodologia de Ensino etc. em tópicos árduos sobre o desenvolvimento da
afetividade, da sexualidade, da moralidade, da inteligência, da sociabilidade,
das relações interpessoais, dos programas e currículos, dentre outros, concluo
assombrado o quanto os pressupostos “bullyinescos” são toscos e patéticos, pois
reduzem os conflitos a interpretações nas quais os rótulos personificam
crianças e adolescentes. Assim, não são mais seres em formação no interior de
contextos dinâmicos e sim estereótipos congelados. É de enojar.
Seria
o caso de convocar os profissionais da educação a juntar seus diplomas dos mais
variados cursos para que os joguem na fogueira onde já ardem livros de grande
significância ilustrada e queimados na mesma proporção na qual não foram lidos,
pesquisados e humildemente estudados? É vergonhoso quando uma compreensão
teórica fajuta aglutina legiões para interpretar e intervir, sendo
descaradamente difundida e aceita como verdade superior. Além de estar absurdamente
longe de ser bem estruturada e fundamentada, é preciso ressaltar que toda Teoria
é mapa e não território. Teorias são recortes, mas o mundo da vida não é constituído
de retalhos. Um antigo professor que
tive na Universidade para a disciplina de Psicopatologia e, na época, diretor
do Hospital Psiquiátrico de Marília, dizia que uma pessoa sobre um banquinho no
meio da praça gritando a respeito da proximidade do fim do mundo não é louca
não. Loucos, dizia ele, são os que, em volta, ouvem e acreditam. Sendo o bullying na Escola algo tão sério, não
mereceria compreensões e intervenções mais elaboradas?
Qualquer grupo ou instituição pode eleger
focar e tratar de um assunto. Porém, a Escola sistematiza seus conteúdos e os
integra. Esta é a grande diferença. Ensino e formação são finalidades totalmente
diferentes, mas a formação se dá através do ensino e vice-versa, pois a função social
escolar é regulada culturalmente pelo currículo e pela didática. Há parâmetros,
temas transversais, leis, diretrizes, deliberações, indicações, projetos,
registros, autorizações, planos de gestão, propostas pedagógicas, regimentos
etc., ou seja, todas as ações educativas são reguladas como bem coletivo
lastreado historicamente. De qualquer modo, tudo o que supostamente integra o ideal
da Escola pode ser revisto pelo horizonte das possibilidades ofertadas à
qualidade das relações interpessoais daqueles que dela usufruem. Destituir
sistematicamente a afetividade compositora dos problemas relacionais na Escola
conduz a equívocos assustadores, pois é o mesmo que não assuntá-la como
integrante essencial das condições do viver humano em suas diferentes etapas de
desenvolvimento e aprendizagem, inviabilizando a premissa ontológica da
Educação: uma geração que se vai cuida daquela que vem. Visto que somos
finitos, o mais importante para os adultos é ensinar e formar as crianças e
adolescentes naquilo que a vida exigirá de todos: CORAGEM.
A
vida gosta de quem gosta dela. Podemos ter perdas, separações, frustrações e
provações muito duras durante nossa passagem pela Terra. Precisamos muito dos
amigos, pois somos frágeis, temos dúvidas, doenças, acidentes, catástrofes,
injustiças, violências, competitividades e inseguranças. A lista de infortúnios
é extensa e ninguém possui certezas absolutas sobre o futuro, embora possamos
cuidar e zelar para que seja bom e promissor. Viver é muito perigoso. Não
importa o que a vida nos concede de desgraças e sim qual a contribuição que
demos a elas e como lidaremos com elas. Há no ser humano amplos recursos para
enfrentar as dificuldades. Não se pode resistir e alegar desconhecimento senão por
má-fé. Nossos traumas são interpretáveis, a maldade dos outros não é desculpa
para nossa infelicidade. Temos que encorajar filhos e alunos a contar sobre quem
os incomoda insistentemente por preconceito ou crueldade, buscando o diálogo
franco, mas sem oprimi-los com julgamentos rigorosos ou puritanos. “Pancada
forte e reio leve” diriam os sábios antigos, pois é assim que se educa.
Superproteger os filhos, colocando-os na condição de vítimas é o mesmo que sabê-los
alheios às forças do desenvolvimento. De
nada adianta ter doutorado em inteligência e encontrar-se balbuciando
afetivamente. A saúde emocional sempre estará na abertura das possibilidades,
das alternativas, das diferentes leituras e ações buscadas a partir da
consciência e reconhecimento das responsabilidades. Educar é um ato coletivo.
Conhecer-se é tarefa individual.
Lembrando
a frase pensada pelo índio que na alta montanha em território norte-americano
faz insistentes sinais de fumaça quando, de repente, avista ao cogumelo da
bomba de Hiroshima no fim do horizonte: __Era
isso que eu queria dizer.
MÍDIA E SOLIDÃO
Ao
juntar estas palavras, dispõe-se um universo. Tocar um pequenino ponto dessa
amplitude envolve no mínimo observações sobre as revoluções industriais (1). E o que se nos apresenta todos os dias como
banal e múltiplo, há pouco tempo, coisa de décadas, não poderia ser imaginado
assim factível e corriqueiro. E semelhante à máxima: “o que nunca muda é que
tudo muda”, micro e macro-revoluções vão se inserindo, seduzindo, se
espalhando, focando, a partir de sentidos, desejos, e prazeres, o contato.
O que e
quem contata o que (?) é a principal face - atalho gráfico comunicativo - a ser
vista nas agendas e recursos de celulares, na dinâmica de lans, sites sob a
tutela de favoritos, blogs e faces variados, msns, vídeos e músicas etc. Enfim:
“Quem lê tanta notícia (?)” e “Quais as cores de sua predileção(?)” (2). As
rotinas de relação com estes circuitos de transposição do tempo, um intercâmbio
tênue entre real e virtual, não conota necessariamente vícios, embora possa
haver dependentes. Fico com a impressão de que a rapidez entre o acontecimento
e o que dele se documenta deveria obrigar-nos, mesmo que registro etéreo, à
prudência. Não pode haver ética sem prudência. Ou pode?
De
certo modo, das seis propostas de Ítalo Calvino (3) para o então na época vindouro
próximo milênio, do qual poderemos desfrutar dele uma fração, comunga-nos na
dimensão de que a estética é precedente do veículo, e este, embora senhor de
diversas velocidades, ainda está sob a direção de componentes artístico-literários.
Este é o nosso tempo como outrora e adiante outros estiveram e estarão mediados
por outras sintonias. O peculiar encontra-se na constatação de que antigamente
algo disposto como conquista tecnológica de mídia se superava lenta e
gradativamente e nas últimas décadas vivenciamos uma rápida integração de áreas
até então defendidas por fronteiras delimitadas. Em outras palavras, temos uma
profunda alteração de conceitos por conta do poder da interatividade.
Uma
mudança de conceito opera no objeto interna e externamente provocando nova
organização mediante rupturas de juízo sobre as propriedades que o definiam. Produzir
um texto, telefonar, mandar uma mensagem, distribuir ou ouvir música, registrar
fotos ou vídeos, enviar ou receber informação são comportamentos que estão hoje
sob a tutela de formas e lugares sem fixidez. Aquele mundo veloz dos poemas de
1922, aquela urbanidade dos fios de eletricidade, dos carros começando a lotar
ruas, aquela pressa de se arranjar mais tempo, tudo o que foi tão sutilmente
percebido e escancarado como antecipação hoje se revela à radicalidade da “dama
móbile”.
É
sabido que quanto mais tempo se arranja menos dele se ocupa, pois que há para
com este uma necessidade de iniciativa constante de sabedoria. O tempo assim de nós se ocupa e para com ele toda sabedoria é pouca. Mas o
modelo da racionalidade técnica coloca movimento da produção e na qual a
velocidade é através da eletrônica moderna a obediência ao lema: tempo é
dinheiro. E semelhante ao afeto, esta estranha forma de estar na vida, que é um
desvio do biológico, a necessidade de contato subverte a ordem, embora a roda
da fortuna ampare as estruturas sociais dos palacetes ou das favelas, dos
latifúndios ou das casas caipiras. E
surgem os blogs, as comunidades de debate, a interação contundente sobre
poesia, cinema, literatura, música, exposições, teatro etc.. E amores nascem,
pois que nos apaixonamos através do texto e afetividades e sexualidades são
vividas. E antes, não eram? Considerando que o psicológico seja um resto,
aquilo que se esconde, o contrário possível dos instintos, conclui-se: ora,
sempre existiram e incomodaram os desejos, mas é muito recente a possibilidade
de dividi-los com outras pessoas num modo tão transferencial e que exige um
certo domínio de códigos linguísticos que muitas vezes não possuem pretensão de
elegância.
Supõe-se
que esta democracia da informação constitua uma espécie de “matrix” paralela,
virtual, de rede, interfaces, o cyber espaço no qual seja a liberdade ou a
falta de controle uma variável constante, ora mais, ora menos, dependente de
quem a reclama ou nela interfira. Entretanto, é ainda o mundo dos homens, das
cópias irregulares, das mais variadas formas de pirataria decorrentes da
vantajosa possibilidade de reprodução de softwares e hardwares, dos anonimatos,
dos hackers, das artimanhas pra se lesar com inusitadas formas, de vírus
diversos, de sites pornográficos, da pedofilia anos luz de Nobokov e outras
taras, enfim, ampla vantagem daquilo que normalmente chamaríamos perversão do
propósito inicial, ou, em outras palavras: um desvio.
A realidade
não é uma fantasia (4) e nem com ela perde identidade ou se confunde. A fantasia
é uma atribuição de sentido dada pela consciência conforme o existir com os
entes. Considerando pertinente uma falha, uma lacuna, uma fratura, um equívoco
que se substancie entre o real e o transcendente, pois são tão reais as coisas
quanto a ideia que temos delas, supõe-se: uma loucura, uma alucinação, um
crime, uma incoerência etc.. E absurdos são cometidos também pela dominação
ideológica tanto na afirmação quanto na negação de pensamentos e comportamentos
decorrentes destas suposições e por elas validados ou não. Ao longo da história ocidental, visto que o
oriente é um grande mistério, são voluptuosas as atrocidades tanto em período
de paz quanto de guerra, cujas nascentes, embora fossem de natureza econômica,
produziram valores morais e lugares a se ocupar conforme classe social, sexo,
idade, religião, crença, origem, cor etc..
Ainda
somos herdeiros das idéias ilustradas. Assim, por enquanto, o grande
diferencial ético parece situar a ação de nosso interesse no campo da
interpretação e não vejo diferença se esta cai sobre ou se pauta por uma mídia de contato ou interatividade.
Toda leitura virá após a leitura de mundo, aquela que é o acomodar-se ou o inquietar-se
com a vida. A solidão (5) não é oriunda da competitividade capitalista, da
crise da adolescência ou da degenerescência (meia idade e velhice), do
naufrágio inesperado e do qual somente o eco ficou da voz gritando: “há alguém
aí?” em alguma ilha de ondas severas e repetitivas. A solidão é fundante do ser.
A partir dela e nela arregimenta-se a segurança ontológica, cuja sensação mais
representativa é a de uma integração reflexiva capaz de responder
constantemente perguntas sobre si, o por quê disto ou daquilo, a que se destina
a ação política das meras opiniões, o limiar possível das frustrações, das
injustiças, dos pequenos e grandes medos.
Nessa
toada, ainda na ilusão de que vale mais o modo como se manipula do que o
possível malefício do objeto utilizado, com a má impressão da delicadeza
necessária de quem desarma bombas, cabe lembrar Paulo Freire (6) quando este
escreveu: A raiz mais profunda da politicidade da
educação se acha na educabilidade mesma do ser humano, que se funda na sua
natureza inacabada e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente de
seu inacabamento, histórico, necessariamente o ser humano se faria um ser
ético, um ser de opção, de decisão. Um ser ligado a interesses e em relação aos
quais tanto pode manter-se fiel à eticidade quanto pode transgredi-la.
Notas:
1. Com efeito, a primeira revolução industrial, iniciada na Grã-Bretanha há pouco mais de dois séculos, assistiu à transformação da energia em força mecânica, sob a forma de caldeiras e máquinas a vapor, o que redundou, entre outros avanços materiais, no impulso dado às indústrias manufatureiras (com destaque para o setor têxtil) e aos transportes aquaviários e ferroviários. Ao mesmo tempo, começou a funcionar o primeiro instrumento verdadeiramente universal de comunicação quase instantânea, o telégrafo (ainda funcionando à base de fios e de cabos submarinos), que representou uma espécie de internet da era vitoriana. Já na segunda revolução industrial, um século após, o destaque ficou com a eletricidade e a química, resultando em novos tipos de motores (elétricos e à explosão), em novos materiais e processos inéditos de fabricação, paralelamente ao surgimento das grandes empresas (algumas vezes organizadas em cartéis), do telégrafo sem fio e, logo mais adiante, do rádio, difundindo instantaneamente a informação pelos ares. A terceira revolução industrial, nossa contemporânea por sua vez, mobilizou circuitos eletrônicos e, logo em seguida, os circuitos integrados, os famosos microchips, que transformaram irremediavelmente as formas de comunicação e de informação, com a explosão da internet e do comércio eletrônico e voltado crescentemente para o lazer. (Paulo Roberto de Almeida, "O brasil e a nanotecnologia: rumo à quarta revolução industrial", in http://www.espacoacademico.com.br/052/52almeida.htm).
Notas:
1. Com efeito, a primeira revolução industrial, iniciada na Grã-Bretanha há pouco mais de dois séculos, assistiu à transformação da energia em força mecânica, sob a forma de caldeiras e máquinas a vapor, o que redundou, entre outros avanços materiais, no impulso dado às indústrias manufatureiras (com destaque para o setor têxtil) e aos transportes aquaviários e ferroviários. Ao mesmo tempo, começou a funcionar o primeiro instrumento verdadeiramente universal de comunicação quase instantânea, o telégrafo (ainda funcionando à base de fios e de cabos submarinos), que representou uma espécie de internet da era vitoriana. Já na segunda revolução industrial, um século após, o destaque ficou com a eletricidade e a química, resultando em novos tipos de motores (elétricos e à explosão), em novos materiais e processos inéditos de fabricação, paralelamente ao surgimento das grandes empresas (algumas vezes organizadas em cartéis), do telégrafo sem fio e, logo mais adiante, do rádio, difundindo instantaneamente a informação pelos ares. A terceira revolução industrial, nossa contemporânea por sua vez, mobilizou circuitos eletrônicos e, logo em seguida, os circuitos integrados, os famosos microchips, que transformaram irremediavelmente as formas de comunicação e de informação, com a explosão da internet e do comércio eletrônico e voltado crescentemente para o lazer. (Paulo Roberto de Almeida, "O brasil e a nanotecnologia: rumo à quarta revolução industrial", in http://www.espacoacademico.com.br/052/52almeida.htm).
2. Versos
de Caetano Veloso.
3. Para Calvino
(seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, SP: Cia das letras, 1990 -
p. 58): a função da literatura é a comunicação entre o que é diverso pelo fato
de ser diverso, não embotando, mas antes exaltando a diferença, segundo a
vocação própria da linguagem escrita. Nota da nota: “leveza”, “rapidez”,
“exatidão”, “visibilidade” e “multiplicidade” são cinco conferências que Calvino
havia preparado para a universidade de Harvard e que, devido à morte súbita do
autor, nunca foram proferidas. São também cinco das qualidades da escritura
(uma sexta, a "consistência", seria o tema da última conferência, jamais escrita)
que Calvino teria desejado transmitir à humanidade deste milênio.
4. Nessa
perspectiva de relação entre a realidade e o imaginado, professor, o sociólogo
e crítico literário Antônio Cândido (1990) diz que: o cidadão deve ser
também um homem que consegue ter o seu equilíbrio interior. Para alguém ter
equilíbrio interior é preciso dosar muito sabiamente a proporção de real e a
proporção de fantasia que fazem parte da existência de cada um de nós. (fala
presente no filme: palavra de leitor – produzido em 1990 por professores da
faculdade de educação da Unicamp, dentre os quais Wanderley Geraldi).
5. Aprofundamentos nesta
compreensão podem ser lidos em: Sartre, Jean-Paul. o existencialismo é um
humanismo. Coleção Os Pensadores, SP: Abril S. A., primeira edição, 1973.
6. Pedagogia da autonomia:
saberes necessários à prática educativa. São Paulo,
SP: Paz e Terra, 1996.
SOBRE ÁGUAS
Podemos olhar de muitas
maneiras as coisas do mundo. Coisas, vivas ou não, por sua vez, dependendo do ser que as olha,
adquirem variadas palavras, formas e utilidades. A combinação dessas duas
dependências é que vai formando os contornos da realidade.
O que tanto poderia ser, por
exemplo, um rio que prende a atenção da gente e que pela afluência de
córregos banha uma várzea de taboas?
Seria uma bela paisagem para um quadro ou fotografia? Quem sabe água fácil para
plantas, animais e lavadeiras? Um terreno fértil para a plantação de arroz?
Barro bicolor para olarias, areia fina para construções, noites de sapos e rãs?
O que mais poderia ser um
rio? Quem já leu estes versos?
Se este rio fosse meu
Eu não deixava poluir
Joguem esgotos noutra parte
Que os peixes moram aqui
É uma estrofe de Paraíso do livro Poemas para brincar. O saudoso José Paulo Paes a escreveu. Os
poetas têm essa mania de confiar às crianças responsabilidades de nos lembrar
verdades anteriores às que falsamente construímos. Qual resposta pode ser mais
simples e contundente do que essa: O rio é o lugar onde vivem os peixes.
A simplicidade nos rodeia
porque nem só de pão vivemos. Precisamos ter a alma cortada de incontáveis fios
d'água, que sejam perenes, suportem estiagens... por memória, iguais ao que
atravessa o conto O burrinho pedrês,
de Guimarães Rosa. Depois podem vir e surgir os ribeirões, os riachos, os rios,
os desenhos de fronteira, as enchentes. Quando o li, numa das páginas, deixei
escapar a frase em que Rosa dizia que o
desejo do peixe é que o rio não tenha margens.
Poderíamos
preservar e cuidar melhor dos pequenos cursos d'água que atravessam capoeiras,
bosques, chácaras, sítios, fazendas, bairros, distritos e cidades. Impedir que
cheguem e fiquem neles quaisquer tipos de lixo ou entulho. Denunciar despejos
clandestinos e questionar a legalidade dos oficializados. Desejar irrigações
livres de agrotóxicos. Para o bem de todos, pressionar constantemente o poder
público municipal e saber quanto e até quando nos custará uma estação de
tratamento de esgotos.
Aqui na cidade onde resido,
não faz muito tempo, foi efetuado o
reflorestamento de um trecho das margens do rio Mogi Mirim. O tempo
passa com seu ritmo habitual, independente da eticidade de nossas ações. Hoje
cresceu tanto sua nova mata ciliar que as árvores impedem que da estrada sejam
vistas suas águas escurecidas, fétidas e de químicas desconhecidas.
Devemos, temos a obrigação
de colocar em debate ideias que possam defender os peixes. Reconheçamos, em
favor dessa iniciativa, que os invejamos profundamente e secretamente. Esses
animais respiram de tal modo que podem viver constantemente com os seus corpos
cercados de água e nós só tivemos esse privilégio quando aguardávamos o momento
de deixar o ventre da mãe. Lá sim, envoltos de líquido, pareceria seguro o manso balanço do primeiro
berço. Na relação do corpo com as crenças, o ritual do batismo é um sacramento
dito de renovação, de esperança. É como se anunciasse ao recém-nascido: Calma,
nesse lado também existem muitas águas. Não conseguiremos facilmente elevar
sobre a mente os dois mil anos de cristianismo que substanciam nossas
concepções. Eu gosto da sagrada escritura assim mesmo, cheia de catástrofes
como as do dilúvio e milagres como os de Jesus multiplicando peixes ou
caminhando sobre as águas.
Em outubro, visitei o rio
Mogi Guaçu. Estava muito baixo e ali pelos lados da cidade de Conchal mostrava
uma costela imensa de pedras. Num dos poucos remansos pude ver o trajeto
vagaroso de tantos objetos descartados pela nossa sociedade industrial. Notei
também que o assoreamento produzira centralmente uma ilhota, que de terra e
areia alimentava capins diversos. Sobre ela, meio que enroscada, mas de posição
correta e pés fincados, avistei que descansava uma imensa poltrona. Que bom
lugar para ler um livro..., pensei ironicamente, se não fosse aquele sol de
rachar mamonas e estofados.
O mirim busca o açu e é
assim, ao contrário do movimento dos peixes, que procede o sentido dos bens.
Nesse ponto, se me fosse dada uma escolha, queria levar para o conforto da
poltrona a leitura do livro de Ernest Hemingway, O velho e o mar. Tudo porque julgo que somos felizes se conseguimos
envelhecer e vir um dia a pescar em mares de melhor sorte.
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