Estava no final do forçado intervalo
entre sessões, pois houve falta no atendimento certeiro, o que perturbou-lhe sensivelmente as ideias. Das
oito às nove da noite refletiu seus casos em solidão. Já eram quase nove. As
supervisões sempre tão caras. O consultório da cidade de médio porte em local central e adequado com poltronas indicadas para o conforto e, não poderiam faltar, peças
miniaturizadas de estátuas gregas e romanas, quadros abstratos e abajures para
a luz das penumbras. Era um especialista. Trabalhou com crianças, no começo,
depois adolescentes e adultos, assessorou escolas e empresas, escreveu artigos
em revistas sérias e, principalmente, destas para clínicas ginecológicas, fez
os cursos necessários, muito esforço e dedicação somados aos seus cabelos ralos
e brancos. Compensava com a barba que achava farta, sabia ser alucinação.
Deixava o ar com o cheiro das baforadas de seus cachimbos aromáticos. Era meio
obeso, era meio baixo, vestia-se com discrição cinza ou pastel, apreciava o uso
de sapatos largos, os óculos eram de fundo de garrafa e isto não definiu-se ainda
se o agradava ou causava estranhamento. Era terapeuta de casal.
Homem sábio e capaz de discutir psicanaliticamente os filmes do Woody Allen, pelo menos os alusivos às famosas crises de
relacionamento, “Lua de fel” do Polanski o interessava pouco, mas não podia
negar que a cena do leite sobre os seios estava em sua eroticidade permanentemente,
embora fosse difícil relacioná-la ao sadomasoquismo proposto por Jung. Seu
ídolo era Vinícius de Moraes, dono de nove casamentos, o poetinha ao perceber o final do amor, levava embora apenas - sem olhar pra
trás ou mesmo lapidar despedidas - os apetrechos de higiene bucal, a saber
pasta de dentes e escova. Também pudera, ele fumava muito, bebia muito,
escrevia muito, amava muito. Casado há trinta anos, já avô, evitando fotos de familiares sobre as mesas daquele lugar. Lugar nem frio e nem quente, nem claro e tão pouco, escuro. Seu ou daqueles que dele necessitavam? Jamais soube. Estava
triste e pensando na esposa enraivecida a sua espera. Fazia já alguns meses ela
endoideceu nos costumes do querer bem. Por mais que tentasse, não era possível
decifrar este enigma rastreador de sua existência. Estava apavorado.
Era praxe de sua secretária
anotar dados iniciais na pré-consulta e deixá-los antecipadamente à sua disposição. Lia as fichas lógicas com atenção de anamnese
equilibrada, corria os olhos e já enquadrava tudo. Estava acostumado com as
histórias sabidas comuns. O trabalho os separou, a construção da casa os separou, os
filhos e os problemas decorrentes, o mundo vil que não se controla, a vida os
havia distanciados com a mesmice dos motivos, mas chegavam juntos e esperançosos
de respostas originais para dúvidas iguais. Separavam também tais perguntas, tratadas
como retas paralelas todas as questões costumeiras e os olhares nunca se
dirigiam um para o outro, sempre para o infinito onde se encontrariam,
imaginavam. As idades, graças a Deus, eram inferiores as dele. Terapeuta novo é
roubada. Terapeuta velho, sinal de acerto. Invertia esta mão em favor dos
clientes. Era um bom homem. Amava o que fazia. Será que amava a esposa? Achou estranho
que no final do questionário a pergunta sobre como se sentiam estava respondida com a palavra: felizes.
Entrou o casal. Ela esbelta, um metro e sessenta e cinco de sol, diria uma música. Bem vestida, morena ouro, singela e elegante, ares mineiros para um olhar misterioso. Sentou-se primeiro, parecia mais corajosa que o companheiro e antes da bolsa sobre o colo daquela saia cinza de tecido grosso, suavemente afastou a cadeira ao lado com indiscutível gentileza. Ele, magro e meio tosco nos movimentos, parecia estrábico disfarçando o acabrunhado da cena torta, roupas menos sociais, disse boa noite e estendeu a mão. Ela se deu conta do deslize e imediatamente repetiu o gesto cortês. Ambos puxaram fundo o ar. Ele sentou-se e aproximou a cadeira dele da dela. O terapeuta acendeu o cachimbo com a calma de quem seria o vencedor das boas palavras. Olhou para eles, carregando o silêncio com fumaça para aquele momento após a frase interrogativa de abertura: __ Pois não, em que posso ajudar?
Ele abaixou a cabeça até o
momento que ela o fitou. Ele retribuiu o olhar e sorriu sem querer. Ela retribuiu
o sorriso e virou-se para terapeuta com olhos de fundo de garrafa. Escutou-se o
ranger de encaixes de madeira dos acentos, houve uma aproximação instintiva daqueles três seres. Ela disse: __ Eu e ele estamos sofrendo muito
doutor. Estamos apaixonados faz uns meses, tudo fica em volta disto, tudo
parece ser um perigo se não nos comunicamos. Inventamos compulsivamente pesquisas de música,
varremos filmes e memórias, livros, poemas, contos, nos deciframos o tempo todo mesmo quando brincamos
de esconde-esconde, sabemos algumas metáforas sobre o amor, achamos o sexo é
uma fase densa, estamos sem dormir direito, preocupados com o excesso deste
sentimento e muito confusos. Ameaçou chorar, mas nada surgiu da voz doce que distanciasse os interlocutores. Ele
tomou a palavra para que ela pudesse descansar daquele desabafo apurado. Ela
tomou a bolsa como fazem os esquilos com as sementes, o terapeuta não fumava,
parecia na verdade que mamava. Tudo estava ficando profundamente tenso e neblinado. O cônjuge repetiu e acrescentou ares rebuscados aos dissabores da paixão relatada que os envolvia,
detalhando inquietações com alma de
poeta, parecendo a ela até descobertas. Então, coisas novas surgiram com transparência lúdica, de modo que nem ali escapavam de ser vividas sem antes ou depois atravessá-los de entusiasmo infantil. Repentinamente, aquietaram-se e, não seria incorreto dizer, ligeiramente envergonhados.
O terapeuta sisudamente levantou-se cachimbando, pegou o
paletó e o vestiu, abriu a gaveta e dela apoderou-se de chaves e da carteira e, enquanto balançava o molho em guizos no ar, com a outra mão destinava os documentos, cartões e dinheiro juntados em couro surrado para o bolso da calça.
Agitado e visivelmente perturbado, rodou em torno de si sem saber direções e sentidos. Disse um boa noite firme, seguro e definitivo, deixando os dois
para trás atônitos sem mais nem menos porquês e saiu com passos largos. Abriu, passou e não bateu a porta. Desapareceu. Nas ruas noturnas daquele dezembro as lojas abriam até às dez horas. Foi impossível ao casal abandonado imaginar que
alguma floricultura próxima estivesse agora cheirando a rosas vermelhas, tabaco e mel.
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