VAMOS


Quando ela se foi,
não achei ninguém
para um abraço, e olha:
olhei em volta.
Achei sim, ela
merecia muito além
daquela citação
do Pequeno Príncipe.
Mas a cidade é pequena
e o  contumaz orador,
semelhante ao médico,
fez o melhor que pode.

Tanto deixei de dizer,
mas recordo-me
quis e não o fiz
sobre o seu silêncio,
nas sessões,
nos potes de argila,
grandes cântaros
nos cantos comungados,
no quadro branco
da parede aludindo
com riscos seguros
à condição humana.
Aquela coragem
para a perturbadora
travessia do que somos.

...
Seu silêncio.
Com ele sigo.
Ora, dele me desfruto,
Ora, por vezes,
lhe dedico.


Feliz 2013


Sonhei que o fogo gelava.
Sonhei que a neve fervia.
Sonhei que ela corava,
quando me via.

(Chico Buarque)

ELA


Estamos na época da privacidade infeliz.
Todas as fotos, porém, teimam o contrário,
mas solidão verdadeira nada contém,
mesmo porque, não há como registrá-la.
E o tido como importante a corrigir,
pelos regrados insensíveis,
é casa em eterna reforma,
nas cidades jamais prontas.
Por isto a amo, amo até esquecer,
nada a mudar e o mundo vasto e infinito.
Nas noites em que todos se esvaziam,
a sua natureza simples,
vive.


PEDAGOGOS

Breve, chegará o tempo
das perdas do egoísmo tosco
pesarem afiadas sobre as almas.
Desculpas... quantas houve, pois aludiam
arte, pedagogia, boa intenção ou necessidade.
E por medo, expressavam raiva e prazos escassos.
E com ignorância, ensinavam os surdos aos berros.
E no lugar vazio da arrogante estupidez,
restarão surtadas as vergonhas
e o mais frio esquecimento.


BOCA SUJA


Nessa vida
Muitas vezes
Repare
O palavrão sacana
São mulheres
De boca amarga
E peles flácidas
De tal modo vil
Que se chega fácil
Aos ossos frágeis
Das camas pobres
Dos móveis surrados 


LITORÂNEOS


Árvores escondem pássaros recolhidos.
O ar, a fumaça dos severos carros.
A terra, a alegria da noite estrelada.
Amanhã, abraçado na manhã de chuva,
o coração, o nada esconderá.

Dias são seres  imprecisos.



EUROPA


Expanda mãos
Roupas de sua cama
Dunas de setembro
Anel na cor das unhas
Livro a ler e já lido

Force as janelas
Docemente
Inspire o tempo
A beleza a passeio
No mundo carecido


LEI FÍSICA



Excetuando os casos
em que falta gravidade,
o que é ápice
também é
decadência.

CACHORRO LOUCO



       Não se encontra bem neste mês de agosto. Está em paz e sereno com todos. Alcançou, afinal, aquele topo dos quarenta anos no qual a sensatez suporta as lembranças vergonhosas, covardes, fracas e esquisitas e estende as culpas e derrotas pelo parapeito da janela mais alta do fingimento. Entretanto, diz-se mais: tudo funciona bem: o intestino, o sexo, os rins, o apetite, as mãos. Tudo. E se dinheiro não possui, pouco o aflige a falta já costumeira. Incensos de variadas intenções queimam com as lacunas da infância e do cotidiano. O rio quando seca expõe o leito. O leito emergente cria despertencimento severo. As águas apreciam sobrenadar. Existe um misto de despedida e beleza nos objetos. Agosto causa intensa parecença com a desilusão. E o mundo assim se apresenta destituído e seco, sucumbindo ao outono. Aos poucos, nesse mês ingrato e belicoso, frui o fio verde claro quase azul de tão leve dos cântaros de argila marrom, entre a vigília e a perene sensação entorpecida dos que nutrem vingança e clemência. 




PASSOS LENTOS



       Não havia caminho para carroças ou carros de motores. A casa caiada escondida, acessível por trilhas estreitas de vacas e saúvas. Os lados do corpo em muitos trechos lambidos pelas folhas das árvores, algumas com peçonha. A clareira habitada do lugar. O chão batido, poucos móveis. Cômodos separados por paredes baixas. Caibros de eucalipto com telhado de peças desiguais, embolorado, emaranhado por fios cinzas de aranhas negras. Na sala, duas cadeiras de palha trançada, o sofá desbraçado calçado por tocos, uma espingarda antiga enferrujada sobre a travessa da porta. Nossa Senhora de olhar piedoso com os dias do ano na cal de  altura aceitável e cruzada pela antena do rádio de válvulas, diagonal esticada engrossada com fezes de mosquito. Uma tália de barro cozido no canto portada ao lado da passagem para a cozinha. Tudo encardido. Um cheiro de sabão de cinza ainda precoce. Ele e a mulher. Uma criatura sempre vista com pano na cabeça, esquelética, desdentada, trincada de rugas, vestida de maltrapilhos. Conversavam raramente. O desespero calcou-lhes alienação, a pobreza: medo, a dor: fé, a solidão: devaneio. Tudo estava atrasado. A pequena horta dos fundos, lenhas dos pastos, estrumes de animais com carrapatos e piolhos, vassoura de bambulim do terreiro, milho de galinhas, fubá de porcos, unhas compridas e sujas cuidando, o remédio próximo das doenças que os acometiam, marcelinha, hortelã, mentruz, cidreira, levante, erva-de-são-joão, arruda, outros que no campo mesmo se conduziam nas sombras de alecrins. Na cozinha, o fogão esquadriado na borraça negra das fumaças, entulhado de panelas tortas de alumínio. Uma bancada ao lado com bacias e baldes para água. O poço logo ali depois do abacateiro, não muito fundo e de garganta forrada por samambaias comuns amarelo-pálidas. Uma prateleira roída de cupins com mantimentos da venda em começo de mês, arroz, feijão, óleo, gordura e sal, fósforos, utensílios e três lamparinas descansando da noite. Odor de querosene. Ele e o irmão. Um sujeito de cabeça socada, pernas encurvadas, orelhas imensas da velhice longa, um bigode ralo, um olhar miúdo, feições de macaco, surdo. Nos quartos, camas de molas e pregos pretos de vigota enfiados nos rebocos para pesos de roupas e bornás de roça. Janelas e portas de tramelas. Beirais com varas de pescar, pequenas latas de veneno, tralhas esquecidas. Tudo encardido. Todo domingo de manhã Seu Lázaro percorria o caminho de bambus, carquejas, amoras, goiabas, araçás, jatobás até que lhe fosse possível atravessar o córrego de águas e lambaris claros contrastados com o branco leite das flores doces de perfume dos lírios caetés. Seu conversar em rompantes pelo modo gutural convencido da dureza. Não muito alto, meio obeso, roupas de pontos a passos largos de agulha por fora na barra da calça, na manga da camisa, nos arremates da linha de cor desigual ao tecido. Chapéu de feltro torto na cabeça, um guarda chuva de bengala e proteção contra cobras e cachorros. Tudo o que dos três seres era belo e feio, limpo ou não, agora pouco interessa, pois tudo não existe mais.

FEIJÃO ROSINHA



Aqui, onde a serra da Mantiqueira pende para o lado sul de Minas Gerais, gradeia-se em lugares de terra escura e recoberta de pedras pardas de variados tamanhos e formas, enfeitando amiúde os pés de arroz-do-diabo ou chifre-de-carneiro ou maria-leite ou capim-gordura nos pontos de erosão. No meio de pequenas laranjeiras de folhas verde-claras e de tão novas cheirando a sulfatos, planta-se o feijão das águas. E nasce nas primeiras chuvas do final de setembro a plantinha de duas palmas de mãos dizendo amém. E são necessárias duas "carpas" e depois se deixa ao tempo, se esquece... forma maior de reconhecimento da natureza. Em algum dia na manhã, o sol é apagado por leves mantos de seda negra. Então, corre-se para o rancho e busca-se uma peneira de arame em quadrados trançada. A peneira lembrada em canções antigas e leitos curvos de córrego de águas limpas na qual pululam lambaris sobre seu plano, milagres, risos consequentes. Predadora também de girinos de pernas traseiras feitas ou não, besouros de galhos, sanguessugas, mandixingas, carás, inguilas miúdas e tuviras de danças serpenteadas... sim, sobre ela depositam-se uma a uma as vagens, bainhas ora rosas ora esbranquiçadas ora amarelas da leguminosa nova cheirando a leite materno. E é uma festa aquela de crianças ao redor a debulhá-las, cortando os fios do ventre dos bagos enquanto limpam o nariz com costas de antebraços. E por qualquer coisa se sorri e por qualquer coisa se briga. E não demora, a peneira está repleta e pesada de grãos granados, úmidos e o carinho deles no vão dos dedos é suave. Brincadeira de imitar o tempo.

DISCURSOS SOBRE BULLYING



Em favor de uma  Educação para a  coragem.


“Não existe ninguém tão grande para quem seja uma desonra estar sujeito às leis
que regem com igual rigor a atividade normal e a atividade patológica”.
FREUD, “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância”.

Dirijo estas singelas reflexões para pais e educadores e leitores outros. Peço a gentileza de compreenderem, entretanto, que toda vez que aparecer a palavra “Escola” neste texto, refiro-me a qualquer instituição séria, bem organizada, com profissionais engajados e experientes, de base curricular e didática esmerada, com cuidadosas avaliações e bons resultados, inovadora, com instrumental seguro para acompanhar os movimentos estudantis cotidianos, de história reconhecida, enfim, de alto nível. Posto isto, vamos aos meus argumentos.
O respeito vem de berço, aquilo que se aprende em casa, na família. Não é papel da Escola ensinar esta virtude moral e sim lapidá-la no âmbito móvel, porém estrito, de suas responsabilidades. Em se tratando de filhos supostamente “bullyinados”, os discursos e posturas de diferentes pais em ocasiões distintas muitas vezes, infelizmente, apresentam intensa agressividade dirigida aos profissionais escolares. Isso me chama a atenção, mas não me assusta, pois a “loucura” carece de originalidade.  Pensando nas relações entre aqueles que usufruem um serviço comum, lugares de convivência variados são isentos de ameaças de processo judicial por parte dos pais quando há conflitos do rebento com os demais clientes. A Escola não se encaixa nesta isenção, pois, segundo eles, seria obrigação dela antecipar-se e prever, lendo corretamente os sinais do futuro terremoto. E porque supostamente não o fez, muito provavelmente será acusada de possuir profissionais mal treinados, diretores e coordenadores omissos e desprovidos de iniciativa e falhos na condução dos subordinados. Qual a função ideológica desta fala revoltosa?  Ao que me consta, a raiva é filha do medo. Enquanto se violenta a Escola, negam-se quais temores?
Bullying”, palavra nova para algo tão antigo, gerou um discurso politicamente correto e uma moda pseudo-teórica para sustentá-lo, achando que assim criticará profundamente a instituição mais importante da sociedade para a transmissão do capital cultural, destacando para esta missão especialistas de caráter duvidoso através de veículos e programas de comunicação, muitos deles também igualmente duvidosos, a desfiar a ladainha maçante de como são a dinâmica, os agentes e as formas de constatar e prevenir. Desculpem-me pela lembrança, mas Escola é lugar da autoridade de pedagogos e educadores. E quando penso na complexidade conceitual, histórica, metodológica, técnica e prática inerente aos estudos de incontáveis autores renomados de Psicanálise, Psicologia Genética, Psicologia da Gestalt, Psicologia Analítica, Psicologia Social, Psicologia Humanista, Psicologia Sócio-Histórica, Daseinanálise, Filosofia e História da Educação, Didática, Metodologia de Ensino etc. em tópicos árduos sobre o desenvolvimento da afetividade, da sexualidade, da moralidade, da inteligência, da sociabilidade, das relações interpessoais, dos programas e currículos, dentre outros, concluo assombrado o quanto os pressupostos “bullyinescos” são toscos e patéticos, pois reduzem os conflitos a interpretações nas quais os rótulos personificam crianças e adolescentes. Assim, não são mais seres em formação no interior de contextos dinâmicos e sim estereótipos congelados. É de enojar.
Seria o caso de convocar os profissionais da educação a juntar seus diplomas dos mais variados cursos para que os joguem na fogueira onde já ardem livros de grande significância ilustrada e queimados na mesma proporção na qual não foram lidos, pesquisados e humildemente estudados? É vergonhoso quando uma compreensão teórica fajuta aglutina legiões para interpretar e intervir, sendo descaradamente difundida e aceita como verdade superior. Além de estar absurdamente longe de ser bem estruturada e fundamentada, é preciso ressaltar que toda Teoria é mapa e não território. Teorias são recortes, mas o mundo da vida não é constituído de retalhos.  Um antigo professor que tive na Universidade para a disciplina de Psicopatologia e, na época, diretor do Hospital Psiquiátrico de Marília, dizia que uma pessoa sobre um banquinho no meio da praça gritando a respeito da proximidade do fim do mundo não é louca não. Loucos, dizia ele, são os que, em volta, ouvem e acreditam. Sendo o bullying na Escola algo tão sério, não mereceria compreensões e intervenções mais elaboradas?
Qualquer grupo ou instituição pode eleger focar e tratar de um assunto. Porém, a Escola sistematiza seus conteúdos e os integra. Esta é a grande diferença. Ensino e formação são finalidades totalmente diferentes, mas a formação se dá através do ensino e vice-versa, pois a função social escolar é regulada culturalmente pelo currículo e pela didática. Há parâmetros, temas transversais, leis, diretrizes, deliberações, indicações, projetos, registros, autorizações, planos de gestão, propostas pedagógicas, regimentos etc., ou seja, todas as ações educativas são reguladas como bem coletivo lastreado historicamente. De qualquer modo, tudo o que supostamente integra o ideal da Escola pode ser revisto pelo horizonte das possibilidades ofertadas à qualidade das relações interpessoais daqueles que dela usufruem. Destituir sistematicamente a afetividade compositora dos problemas relacionais na Escola conduz a equívocos assustadores, pois é o mesmo que não assuntá-la como integrante essencial das condições do viver humano em suas diferentes etapas de desenvolvimento e aprendizagem, inviabilizando a premissa ontológica da Educação: uma geração que se vai cuida daquela que vem. Visto que somos finitos, o mais importante para os adultos é ensinar e formar as crianças e adolescentes naquilo que a vida exigirá de todos: CORAGEM.
A vida gosta de quem gosta dela. Podemos ter perdas, separações, frustrações e provações muito duras durante nossa passagem pela Terra. Precisamos muito dos amigos, pois somos frágeis, temos dúvidas, doenças, acidentes, catástrofes, injustiças, violências, competitividades e inseguranças. A lista de infortúnios é extensa e ninguém possui certezas absolutas sobre o futuro, embora possamos cuidar e zelar para que seja bom e promissor. Viver é muito perigoso. Não importa o que a vida nos concede de desgraças e sim qual a contribuição que demos a elas e como lidaremos com elas. Há no ser humano amplos recursos para enfrentar as dificuldades. Não se pode resistir e alegar desconhecimento senão por má-fé. Nossos traumas são interpretáveis, a maldade dos outros não é desculpa para nossa infelicidade. Temos que encorajar filhos e alunos a contar sobre quem os incomoda insistentemente por preconceito ou crueldade, buscando o diálogo franco, mas sem oprimi-los com julgamentos rigorosos ou puritanos. “Pancada forte e reio leve” diriam os sábios antigos, pois é assim que se educa. Superproteger os filhos, colocando-os na condição de vítimas é o mesmo que sabê-los alheios às forças do desenvolvimento.  De nada adianta ter doutorado em inteligência e encontrar-se balbuciando afetivamente. A saúde emocional sempre estará na abertura das possibilidades, das alternativas, das diferentes leituras e ações buscadas a partir da consciência e reconhecimento das responsabilidades. Educar é um ato coletivo. Conhecer-se é tarefa individual.
Lembrando a frase pensada pelo índio que na alta montanha em território norte-americano faz insistentes sinais de fumaça quando, de repente, avista ao cogumelo da bomba de Hiroshima no fim do horizonte: __Era isso que eu queria dizer.

MÍDIA E SOLIDÃO


Ao juntar estas palavras, dispõe-se um universo. Tocar um pequenino ponto dessa amplitude envolve no mínimo observações sobre as revoluções industriais (1).  E o que se nos apresenta todos os dias como banal e múltiplo, há pouco tempo, coisa de décadas, não poderia ser imaginado assim factível e corriqueiro. E semelhante à máxima: “o que nunca muda é que tudo muda”, micro e macro-revoluções vão se inserindo, seduzindo, se espalhando, focando, a partir de sentidos, desejos, e prazeres, o contato.
O que e quem contata o que (?) é a principal face - atalho gráfico comunicativo - a ser vista nas agendas e recursos de celulares, na dinâmica de lans, sites sob a tutela de favoritos, blogs e faces variados, msns, vídeos e músicas etc. Enfim: “Quem lê tanta notícia (?)” e “Quais as cores de sua predileção(?)” (2). As rotinas de relação com estes circuitos de transposição do tempo, um intercâmbio tênue entre real e virtual, não conota necessariamente vícios, embora possa haver dependentes. Fico com a impressão de que a rapidez entre o acontecimento e o que dele se documenta deveria obrigar-nos, mesmo que registro etéreo, à prudência. Não pode haver ética sem prudência. Ou pode?
De certo modo, das seis propostas de Ítalo Calvino (3) para o então na época vindouro próximo milênio, do qual poderemos desfrutar dele uma fração, comunga-nos na dimensão de que a estética é precedente do veículo, e este, embora senhor de diversas velocidades, ainda está sob a direção de componentes artístico-literários. Este é o nosso tempo como outrora e adiante outros estiveram e estarão mediados por outras sintonias. O peculiar encontra-se na constatação de que antigamente algo disposto como conquista tecnológica de mídia se superava lenta e gradativamente e nas últimas décadas vivenciamos uma rápida integração de áreas até então defendidas por fronteiras delimitadas. Em outras palavras, temos uma profunda alteração de conceitos por conta do poder da interatividade.
Uma mudança de conceito opera no objeto interna e externamente provocando nova organização mediante rupturas de juízo sobre as propriedades que o definiam. Produzir um texto, telefonar, mandar uma mensagem, distribuir ou ouvir música, registrar fotos ou vídeos, enviar ou receber informação são comportamentos que estão hoje sob a tutela de formas e lugares sem fixidez. Aquele mundo veloz dos poemas de 1922, aquela urbanidade dos fios de eletricidade, dos carros começando a lotar ruas, aquela pressa de se arranjar mais tempo, tudo o que foi tão sutilmente percebido e escancarado como antecipação hoje se revela à radicalidade da “dama móbile”.
É sabido que quanto mais tempo se arranja menos dele se ocupa, pois que há para com este uma necessidade de iniciativa constante de sabedoria. O tempo assim de nós se ocupa e para com ele toda sabedoria é pouca. Mas o modelo da racionalidade técnica coloca movimento da produção e na qual a velocidade é através da eletrônica moderna a obediência ao lema: tempo é dinheiro. E semelhante ao afeto, esta estranha forma de estar na vida, que é um desvio do biológico, a necessidade de contato subverte a ordem, embora a roda da fortuna ampare as estruturas sociais dos palacetes ou das favelas, dos latifúndios ou das casas caipiras.  E surgem os blogs, as comunidades de debate, a interação contundente sobre poesia, cinema, literatura, música, exposições, teatro etc.. E amores nascem, pois que nos apaixonamos através do texto e afetividades e sexualidades são vividas. E antes, não eram? Considerando que o psicológico seja um resto, aquilo que se esconde, o contrário possível dos instintos, conclui-se: ora, sempre existiram e incomodaram os desejos, mas é muito recente a possibilidade de dividi-los com outras pessoas num modo tão transferencial e que exige um certo domínio de códigos linguísticos que muitas vezes não possuem pretensão de elegância.
Supõe-se que esta democracia da informação constitua uma espécie de “matrix” paralela, virtual, de rede, interfaces, o cyber espaço no qual seja a liberdade ou a falta de controle uma variável constante, ora mais, ora menos, dependente de quem a reclama ou nela interfira. Entretanto, é ainda o mundo dos homens, das cópias irregulares, das mais variadas formas de pirataria decorrentes da vantajosa possibilidade de reprodução de softwares e hardwares, dos anonimatos, dos hackers, das artimanhas pra se lesar com inusitadas formas, de vírus diversos, de sites pornográficos, da pedofilia anos luz de Nobokov e outras taras, enfim, ampla vantagem daquilo que normalmente chamaríamos perversão do propósito inicial, ou, em outras palavras: um desvio.
A realidade não é uma fantasia (4) e nem com ela perde identidade ou se confunde. A fantasia é uma atribuição de sentido dada pela consciência conforme o existir com os entes. Considerando pertinente uma falha, uma lacuna, uma fratura, um equívoco que se substancie entre o real e o transcendente, pois são tão reais as coisas quanto a ideia que temos delas, supõe-se: uma loucura, uma alucinação, um crime, uma incoerência etc.. E absurdos são cometidos também pela dominação ideológica tanto na afirmação quanto na negação de pensamentos e comportamentos decorrentes destas suposições e por elas validados ou não.  Ao longo da história ocidental, visto que o oriente é um grande mistério, são voluptuosas as atrocidades tanto em período de paz quanto de guerra, cujas nascentes, embora fossem de natureza econômica, produziram valores morais e lugares a se ocupar conforme classe social, sexo, idade, religião, crença, origem, cor etc..
Ainda somos herdeiros das idéias ilustradas. Assim, por enquanto, o grande diferencial ético parece situar a ação de nosso interesse no campo da interpretação e não vejo diferença se esta cai sobre ou se pauta  por uma mídia de contato ou interatividade. Toda leitura virá após a leitura de mundo, aquela que é o acomodar-se ou o inquietar-se com a vida. A solidão (5) não é oriunda da competitividade capitalista, da crise da adolescência ou da degenerescência (meia idade e velhice), do naufrágio inesperado e do qual somente o eco ficou da voz gritando: “há alguém aí?” em alguma ilha de ondas severas e repetitivas. A solidão é fundante do ser. A partir dela e nela arregimenta-se a segurança ontológica, cuja sensação mais representativa é a de uma integração reflexiva capaz de responder constantemente perguntas sobre si, o por quê disto ou daquilo, a que se destina a ação política das meras opiniões, o limiar possível das frustrações, das injustiças, dos pequenos e grandes medos.
Nessa toada, ainda na ilusão de que vale mais o modo como se manipula do que o possível malefício do objeto utilizado, com a má impressão da delicadeza necessária de quem desarma bombas, cabe lembrar Paulo Freire (6) quando este escreveu: A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade mesma do ser humano, que se funda na sua natureza inacabada e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente de seu inacabamento, histórico, necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de opção, de decisão. Um ser ligado a interesses e em relação aos quais tanto pode manter-se fiel à eticidade quanto pode transgredi-la. 

Notas:

1. Com efeito, a primeira revolução industrial, iniciada na Grã-Bretanha há pouco mais de dois séculos, assistiu à transformação da energia em força mecânica, sob a forma de caldeiras e máquinas a vapor, o que redundou, entre outros avanços materiais, no impulso dado às indústrias manufatureiras (com destaque para o setor têxtil) e aos transportes aquaviários e ferroviários. Ao mesmo tempo, começou a funcionar o primeiro instrumento verdadeiramente universal de comunicação quase instantânea, o telégrafo (ainda funcionando à base de fios e de cabos submarinos), que representou uma espécie de internet da era vitoriana. Já na segunda revolução industrial, um século após, o destaque ficou com a eletricidade e a química, resultando em novos tipos de motores (elétricos e à explosão), em novos materiais e processos inéditos de fabricação, paralelamente ao surgimento das grandes empresas (algumas vezes organizadas em cartéis), do telégrafo sem fio e, logo mais adiante, do rádio, difundindo instantaneamente a informação pelos ares. A terceira revolução industrial, nossa contemporânea por sua vez, mobilizou circuitos eletrônicos e, logo em seguida, os circuitos integrados, os famosos microchips, que transformaram irremediavelmente as formas de comunicação e de informação, com a explosão da internet e do comércio eletrônico e voltado crescentemente para o lazer. (Paulo Roberto de Almeida, "O brasil e a nanotecnologia: rumo à quarta revolução industrial", in http://www.espacoacademico.com.br/052/52almeida.htm).

2. Versos de Caetano Veloso.

3. Para Calvino (seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, SP: Cia das letras, 1990 - p. 58): a função da literatura é a comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando, mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita. Nota da nota: “leveza”, “rapidez”, “exatidão”, “visibilidade” e “multiplicidade” são cinco conferências que Calvino havia preparado para a universidade de Harvard e que, devido à morte súbita do autor, nunca foram proferidas. São também cinco das qualidades da escritura (uma sexta, a "consistência", seria o tema da última conferência, jamais escrita) que Calvino teria desejado transmitir à humanidade deste milênio.

4. Nessa perspectiva de relação entre a realidade e o imaginado, professor, o sociólogo e crítico literário Antônio Cândido (1990) diz que: o cidadão deve ser também um homem que consegue ter o seu equilíbrio interior. Para alguém ter equilíbrio interior é preciso dosar muito sabiamente a proporção de real e a proporção de fantasia que fazem parte da existência de cada um de nós. (fala presente no filme: palavra de leitor – produzido em 1990 por professores da faculdade de educação da Unicamp, dentre os quais Wanderley Geraldi).

5. Aprofundamentos nesta compreensão podem ser lidos em: Sartre, Jean-Paul. o existencialismo é um humanismo. Coleção Os Pensadores, SP: Abril S. A., primeira edição, 1973.

6. Pedagogia da autonomia: saberes  necessários  à prática  educativa.  São Paulo, SP: Paz e Terra, 1996.

SOBRE ÁGUAS



Podemos olhar de muitas maneiras as coisas do mundo. Coisas, vivas ou não,  por sua vez, dependendo do ser que as olha, adquirem variadas palavras, formas e utilidades. A combinação dessas duas dependências é que vai formando os contornos da realidade.
O que tanto poderia ser, por exemplo, um rio que prende a atenção da gente e que pela afluência de córregos  banha uma várzea de taboas? Seria uma bela paisagem para um quadro ou fotografia? Quem sabe água fácil para plantas, animais e lavadeiras? Um terreno fértil para a plantação de arroz? Barro bicolor para olarias, areia fina para construções, noites de sapos e rãs?
O que mais poderia ser um rio? Quem já leu estes versos?
                   Se este rio fosse meu
     Eu não deixava poluir
     Joguem esgotos noutra parte
     Que os peixes moram aqui
      É uma estrofe de Paraíso do livro Poemas para brincar. O saudoso José Paulo Paes a escreveu. Os poetas têm essa mania de confiar às crianças responsabilidades de nos lembrar verdades anteriores às que falsamente construímos. Qual resposta pode ser mais simples e contundente do que essa: O rio é o lugar onde vivem os peixes.
A simplicidade nos rodeia porque nem só de pão vivemos. Precisamos ter a alma cortada de incontáveis fios d'água, que sejam perenes, suportem estiagens... por memória, iguais ao que atravessa o conto O burrinho pedrês, de Guimarães Rosa. Depois podem vir e surgir os ribeirões, os riachos, os rios, os desenhos de fronteira, as enchentes. Quando o li, numa das páginas, deixei escapar a frase em que Rosa dizia que o desejo do peixe é que o rio não tenha margens.
   Poderíamos preservar e cuidar melhor dos pequenos cursos d'água que atravessam capoeiras, bosques, chácaras, sítios, fazendas, bairros, distritos e cidades. Impedir que cheguem e fiquem neles quaisquer tipos de lixo ou entulho. Denunciar despejos clandestinos e questionar a legalidade dos oficializados. Desejar irrigações livres de agrotóxicos. Para o bem de todos, pressionar constantemente o poder público municipal e saber quanto e até quando nos custará uma estação de tratamento de esgotos.
Aqui na cidade onde resido, não faz muito tempo, foi efetuado o  reflorestamento de um trecho das margens do rio Mogi Mirim. O tempo passa com seu ritmo habitual, independente da eticidade de nossas ações. Hoje cresceu tanto sua nova mata ciliar que as árvores impedem que da estrada sejam vistas suas águas escurecidas, fétidas e de químicas desconhecidas.
Devemos, temos a obrigação de colocar em debate ideias que possam defender os peixes. Reconheçamos, em favor dessa iniciativa, que os invejamos profundamente e secretamente. Esses animais respiram de tal modo que podem viver constantemente com os seus corpos cercados de água e nós só tivemos esse privilégio quando aguardávamos o momento de deixar o ventre da mãe. Lá sim, envoltos de líquido,  pareceria seguro o manso balanço do primeiro berço. Na relação do corpo com as crenças, o ritual do batismo é um sacramento dito de renovação, de esperança. É como se anunciasse ao recém-nascido: Calma, nesse lado também existem muitas águas. Não conseguiremos facilmente elevar sobre a mente os dois mil anos de cristianismo que substanciam nossas concepções. Eu gosto da sagrada escritura assim mesmo, cheia de catástrofes como as do dilúvio e milagres como os de Jesus multiplicando peixes ou caminhando sobre as  águas.
Em outubro, visitei o rio Mogi Guaçu. Estava muito baixo e ali pelos lados da cidade de Conchal mostrava uma costela imensa de pedras. Num dos poucos remansos pude ver o trajeto vagaroso de tantos objetos descartados pela nossa sociedade industrial. Notei também que o assoreamento produzira centralmente uma ilhota, que de terra e areia alimentava capins diversos. Sobre ela, meio que enroscada, mas de posição correta e pés fincados, avistei que descansava uma imensa poltrona. Que bom lugar para ler um livro..., pensei ironicamente, se não fosse aquele sol de rachar mamonas e estofados.
O mirim busca o açu e é assim, ao contrário do movimento dos peixes, que procede o sentido dos bens. Nesse ponto, se me fosse dada uma escolha, queria levar para o conforto da poltrona a leitura do livro de Ernest Hemingway, O velho e o mar. Tudo porque julgo que somos felizes se conseguimos envelhecer e vir um dia a pescar em mares de melhor sorte.