MÍDIA E SOLIDÃO


Ao juntar estas palavras, dispõe-se um universo. Tocar um pequenino ponto dessa amplitude envolve no mínimo observações sobre as revoluções industriais (1).  E o que se nos apresenta todos os dias como banal e múltiplo, há pouco tempo, coisa de décadas, não poderia ser imaginado assim factível e corriqueiro. E semelhante à máxima: “o que nunca muda é que tudo muda”, micro e macro-revoluções vão se inserindo, seduzindo, se espalhando, focando, a partir de sentidos, desejos, e prazeres, o contato.
O que e quem contata o que (?) é a principal face - atalho gráfico comunicativo - a ser vista nas agendas e recursos de celulares, na dinâmica de lans, sites sob a tutela de favoritos, blogs e faces variados, msns, vídeos e músicas etc. Enfim: “Quem lê tanta notícia (?)” e “Quais as cores de sua predileção(?)” (2). As rotinas de relação com estes circuitos de transposição do tempo, um intercâmbio tênue entre real e virtual, não conota necessariamente vícios, embora possa haver dependentes. Fico com a impressão de que a rapidez entre o acontecimento e o que dele se documenta deveria obrigar-nos, mesmo que registro etéreo, à prudência. Não pode haver ética sem prudência. Ou pode?
De certo modo, das seis propostas de Ítalo Calvino (3) para o então na época vindouro próximo milênio, do qual poderemos desfrutar dele uma fração, comunga-nos na dimensão de que a estética é precedente do veículo, e este, embora senhor de diversas velocidades, ainda está sob a direção de componentes artístico-literários. Este é o nosso tempo como outrora e adiante outros estiveram e estarão mediados por outras sintonias. O peculiar encontra-se na constatação de que antigamente algo disposto como conquista tecnológica de mídia se superava lenta e gradativamente e nas últimas décadas vivenciamos uma rápida integração de áreas até então defendidas por fronteiras delimitadas. Em outras palavras, temos uma profunda alteração de conceitos por conta do poder da interatividade.
Uma mudança de conceito opera no objeto interna e externamente provocando nova organização mediante rupturas de juízo sobre as propriedades que o definiam. Produzir um texto, telefonar, mandar uma mensagem, distribuir ou ouvir música, registrar fotos ou vídeos, enviar ou receber informação são comportamentos que estão hoje sob a tutela de formas e lugares sem fixidez. Aquele mundo veloz dos poemas de 1922, aquela urbanidade dos fios de eletricidade, dos carros começando a lotar ruas, aquela pressa de se arranjar mais tempo, tudo o que foi tão sutilmente percebido e escancarado como antecipação hoje se revela à radicalidade da “dama móbile”.
É sabido que quanto mais tempo se arranja menos dele se ocupa, pois que há para com este uma necessidade de iniciativa constante de sabedoria. O tempo assim de nós se ocupa e para com ele toda sabedoria é pouca. Mas o modelo da racionalidade técnica coloca movimento da produção e na qual a velocidade é através da eletrônica moderna a obediência ao lema: tempo é dinheiro. E semelhante ao afeto, esta estranha forma de estar na vida, que é um desvio do biológico, a necessidade de contato subverte a ordem, embora a roda da fortuna ampare as estruturas sociais dos palacetes ou das favelas, dos latifúndios ou das casas caipiras.  E surgem os blogs, as comunidades de debate, a interação contundente sobre poesia, cinema, literatura, música, exposições, teatro etc.. E amores nascem, pois que nos apaixonamos através do texto e afetividades e sexualidades são vividas. E antes, não eram? Considerando que o psicológico seja um resto, aquilo que se esconde, o contrário possível dos instintos, conclui-se: ora, sempre existiram e incomodaram os desejos, mas é muito recente a possibilidade de dividi-los com outras pessoas num modo tão transferencial e que exige um certo domínio de códigos linguísticos que muitas vezes não possuem pretensão de elegância.
Supõe-se que esta democracia da informação constitua uma espécie de “matrix” paralela, virtual, de rede, interfaces, o cyber espaço no qual seja a liberdade ou a falta de controle uma variável constante, ora mais, ora menos, dependente de quem a reclama ou nela interfira. Entretanto, é ainda o mundo dos homens, das cópias irregulares, das mais variadas formas de pirataria decorrentes da vantajosa possibilidade de reprodução de softwares e hardwares, dos anonimatos, dos hackers, das artimanhas pra se lesar com inusitadas formas, de vírus diversos, de sites pornográficos, da pedofilia anos luz de Nobokov e outras taras, enfim, ampla vantagem daquilo que normalmente chamaríamos perversão do propósito inicial, ou, em outras palavras: um desvio.
A realidade não é uma fantasia (4) e nem com ela perde identidade ou se confunde. A fantasia é uma atribuição de sentido dada pela consciência conforme o existir com os entes. Considerando pertinente uma falha, uma lacuna, uma fratura, um equívoco que se substancie entre o real e o transcendente, pois são tão reais as coisas quanto a ideia que temos delas, supõe-se: uma loucura, uma alucinação, um crime, uma incoerência etc.. E absurdos são cometidos também pela dominação ideológica tanto na afirmação quanto na negação de pensamentos e comportamentos decorrentes destas suposições e por elas validados ou não.  Ao longo da história ocidental, visto que o oriente é um grande mistério, são voluptuosas as atrocidades tanto em período de paz quanto de guerra, cujas nascentes, embora fossem de natureza econômica, produziram valores morais e lugares a se ocupar conforme classe social, sexo, idade, religião, crença, origem, cor etc..
Ainda somos herdeiros das idéias ilustradas. Assim, por enquanto, o grande diferencial ético parece situar a ação de nosso interesse no campo da interpretação e não vejo diferença se esta cai sobre ou se pauta  por uma mídia de contato ou interatividade. Toda leitura virá após a leitura de mundo, aquela que é o acomodar-se ou o inquietar-se com a vida. A solidão (5) não é oriunda da competitividade capitalista, da crise da adolescência ou da degenerescência (meia idade e velhice), do naufrágio inesperado e do qual somente o eco ficou da voz gritando: “há alguém aí?” em alguma ilha de ondas severas e repetitivas. A solidão é fundante do ser. A partir dela e nela arregimenta-se a segurança ontológica, cuja sensação mais representativa é a de uma integração reflexiva capaz de responder constantemente perguntas sobre si, o por quê disto ou daquilo, a que se destina a ação política das meras opiniões, o limiar possível das frustrações, das injustiças, dos pequenos e grandes medos.
Nessa toada, ainda na ilusão de que vale mais o modo como se manipula do que o possível malefício do objeto utilizado, com a má impressão da delicadeza necessária de quem desarma bombas, cabe lembrar Paulo Freire (6) quando este escreveu: A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade mesma do ser humano, que se funda na sua natureza inacabada e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente de seu inacabamento, histórico, necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de opção, de decisão. Um ser ligado a interesses e em relação aos quais tanto pode manter-se fiel à eticidade quanto pode transgredi-la. 

Notas:

1. Com efeito, a primeira revolução industrial, iniciada na Grã-Bretanha há pouco mais de dois séculos, assistiu à transformação da energia em força mecânica, sob a forma de caldeiras e máquinas a vapor, o que redundou, entre outros avanços materiais, no impulso dado às indústrias manufatureiras (com destaque para o setor têxtil) e aos transportes aquaviários e ferroviários. Ao mesmo tempo, começou a funcionar o primeiro instrumento verdadeiramente universal de comunicação quase instantânea, o telégrafo (ainda funcionando à base de fios e de cabos submarinos), que representou uma espécie de internet da era vitoriana. Já na segunda revolução industrial, um século após, o destaque ficou com a eletricidade e a química, resultando em novos tipos de motores (elétricos e à explosão), em novos materiais e processos inéditos de fabricação, paralelamente ao surgimento das grandes empresas (algumas vezes organizadas em cartéis), do telégrafo sem fio e, logo mais adiante, do rádio, difundindo instantaneamente a informação pelos ares. A terceira revolução industrial, nossa contemporânea por sua vez, mobilizou circuitos eletrônicos e, logo em seguida, os circuitos integrados, os famosos microchips, que transformaram irremediavelmente as formas de comunicação e de informação, com a explosão da internet e do comércio eletrônico e voltado crescentemente para o lazer. (Paulo Roberto de Almeida, "O brasil e a nanotecnologia: rumo à quarta revolução industrial", in http://www.espacoacademico.com.br/052/52almeida.htm).

2. Versos de Caetano Veloso.

3. Para Calvino (seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, SP: Cia das letras, 1990 - p. 58): a função da literatura é a comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando, mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita. Nota da nota: “leveza”, “rapidez”, “exatidão”, “visibilidade” e “multiplicidade” são cinco conferências que Calvino havia preparado para a universidade de Harvard e que, devido à morte súbita do autor, nunca foram proferidas. São também cinco das qualidades da escritura (uma sexta, a "consistência", seria o tema da última conferência, jamais escrita) que Calvino teria desejado transmitir à humanidade deste milênio.

4. Nessa perspectiva de relação entre a realidade e o imaginado, professor, o sociólogo e crítico literário Antônio Cândido (1990) diz que: o cidadão deve ser também um homem que consegue ter o seu equilíbrio interior. Para alguém ter equilíbrio interior é preciso dosar muito sabiamente a proporção de real e a proporção de fantasia que fazem parte da existência de cada um de nós. (fala presente no filme: palavra de leitor – produzido em 1990 por professores da faculdade de educação da Unicamp, dentre os quais Wanderley Geraldi).

5. Aprofundamentos nesta compreensão podem ser lidos em: Sartre, Jean-Paul. o existencialismo é um humanismo. Coleção Os Pensadores, SP: Abril S. A., primeira edição, 1973.

6. Pedagogia da autonomia: saberes  necessários  à prática  educativa.  São Paulo, SP: Paz e Terra, 1996.

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