PASSOS LENTOS



       Não havia caminho para carroças ou carros de motores. A casa caiada escondida, acessível por trilhas estreitas de vacas e saúvas. Os lados do corpo em muitos trechos lambidos pelas folhas das árvores, algumas com peçonha. A clareira habitada do lugar. O chão batido, poucos móveis. Cômodos separados por paredes baixas. Caibros de eucalipto com telhado de peças desiguais, embolorado, emaranhado por fios cinzas de aranhas negras. Na sala, duas cadeiras de palha trançada, o sofá desbraçado calçado por tocos, uma espingarda antiga enferrujada sobre a travessa da porta. Nossa Senhora de olhar piedoso com os dias do ano na cal de  altura aceitável e cruzada pela antena do rádio de válvulas, diagonal esticada engrossada com fezes de mosquito. Uma tália de barro cozido no canto portada ao lado da passagem para a cozinha. Tudo encardido. Um cheiro de sabão de cinza ainda precoce. Ele e a mulher. Uma criatura sempre vista com pano na cabeça, esquelética, desdentada, trincada de rugas, vestida de maltrapilhos. Conversavam raramente. O desespero calcou-lhes alienação, a pobreza: medo, a dor: fé, a solidão: devaneio. Tudo estava atrasado. A pequena horta dos fundos, lenhas dos pastos, estrumes de animais com carrapatos e piolhos, vassoura de bambulim do terreiro, milho de galinhas, fubá de porcos, unhas compridas e sujas cuidando, o remédio próximo das doenças que os acometiam, marcelinha, hortelã, mentruz, cidreira, levante, erva-de-são-joão, arruda, outros que no campo mesmo se conduziam nas sombras de alecrins. Na cozinha, o fogão esquadriado na borraça negra das fumaças, entulhado de panelas tortas de alumínio. Uma bancada ao lado com bacias e baldes para água. O poço logo ali depois do abacateiro, não muito fundo e de garganta forrada por samambaias comuns amarelo-pálidas. Uma prateleira roída de cupins com mantimentos da venda em começo de mês, arroz, feijão, óleo, gordura e sal, fósforos, utensílios e três lamparinas descansando da noite. Odor de querosene. Ele e o irmão. Um sujeito de cabeça socada, pernas encurvadas, orelhas imensas da velhice longa, um bigode ralo, um olhar miúdo, feições de macaco, surdo. Nos quartos, camas de molas e pregos pretos de vigota enfiados nos rebocos para pesos de roupas e bornás de roça. Janelas e portas de tramelas. Beirais com varas de pescar, pequenas latas de veneno, tralhas esquecidas. Tudo encardido. Todo domingo de manhã Seu Lázaro percorria o caminho de bambus, carquejas, amoras, goiabas, araçás, jatobás até que lhe fosse possível atravessar o córrego de águas e lambaris claros contrastados com o branco leite das flores doces de perfume dos lírios caetés. Seu conversar em rompantes pelo modo gutural convencido da dureza. Não muito alto, meio obeso, roupas de pontos a passos largos de agulha por fora na barra da calça, na manga da camisa, nos arremates da linha de cor desigual ao tecido. Chapéu de feltro torto na cabeça, um guarda chuva de bengala e proteção contra cobras e cachorros. Tudo o que dos três seres era belo e feio, limpo ou não, agora pouco interessa, pois tudo não existe mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário