Podemos olhar de muitas
maneiras as coisas do mundo. Coisas, vivas ou não, por sua vez, dependendo do ser que as olha,
adquirem variadas palavras, formas e utilidades. A combinação dessas duas
dependências é que vai formando os contornos da realidade.
O que tanto poderia ser, por
exemplo, um rio que prende a atenção da gente e que pela afluência de
córregos banha uma várzea de taboas?
Seria uma bela paisagem para um quadro ou fotografia? Quem sabe água fácil para
plantas, animais e lavadeiras? Um terreno fértil para a plantação de arroz?
Barro bicolor para olarias, areia fina para construções, noites de sapos e rãs?
O que mais poderia ser um
rio? Quem já leu estes versos?
Se este rio fosse meu
Eu não deixava poluir
Joguem esgotos noutra parte
Que os peixes moram aqui
É uma estrofe de Paraíso do livro Poemas para brincar. O saudoso José Paulo Paes a escreveu. Os
poetas têm essa mania de confiar às crianças responsabilidades de nos lembrar
verdades anteriores às que falsamente construímos. Qual resposta pode ser mais
simples e contundente do que essa: O rio é o lugar onde vivem os peixes.
A simplicidade nos rodeia
porque nem só de pão vivemos. Precisamos ter a alma cortada de incontáveis fios
d'água, que sejam perenes, suportem estiagens... por memória, iguais ao que
atravessa o conto O burrinho pedrês,
de Guimarães Rosa. Depois podem vir e surgir os ribeirões, os riachos, os rios,
os desenhos de fronteira, as enchentes. Quando o li, numa das páginas, deixei
escapar a frase em que Rosa dizia que o
desejo do peixe é que o rio não tenha margens.
Poderíamos
preservar e cuidar melhor dos pequenos cursos d'água que atravessam capoeiras,
bosques, chácaras, sítios, fazendas, bairros, distritos e cidades. Impedir que
cheguem e fiquem neles quaisquer tipos de lixo ou entulho. Denunciar despejos
clandestinos e questionar a legalidade dos oficializados. Desejar irrigações
livres de agrotóxicos. Para o bem de todos, pressionar constantemente o poder
público municipal e saber quanto e até quando nos custará uma estação de
tratamento de esgotos.
Aqui na cidade onde resido,
não faz muito tempo, foi efetuado o
reflorestamento de um trecho das margens do rio Mogi Mirim. O tempo
passa com seu ritmo habitual, independente da eticidade de nossas ações. Hoje
cresceu tanto sua nova mata ciliar que as árvores impedem que da estrada sejam
vistas suas águas escurecidas, fétidas e de químicas desconhecidas.
Devemos, temos a obrigação
de colocar em debate ideias que possam defender os peixes. Reconheçamos, em
favor dessa iniciativa, que os invejamos profundamente e secretamente. Esses
animais respiram de tal modo que podem viver constantemente com os seus corpos
cercados de água e nós só tivemos esse privilégio quando aguardávamos o momento
de deixar o ventre da mãe. Lá sim, envoltos de líquido, pareceria seguro o manso balanço do primeiro
berço. Na relação do corpo com as crenças, o ritual do batismo é um sacramento
dito de renovação, de esperança. É como se anunciasse ao recém-nascido: Calma,
nesse lado também existem muitas águas. Não conseguiremos facilmente elevar
sobre a mente os dois mil anos de cristianismo que substanciam nossas
concepções. Eu gosto da sagrada escritura assim mesmo, cheia de catástrofes
como as do dilúvio e milagres como os de Jesus multiplicando peixes ou
caminhando sobre as águas.
Em outubro, visitei o rio
Mogi Guaçu. Estava muito baixo e ali pelos lados da cidade de Conchal mostrava
uma costela imensa de pedras. Num dos poucos remansos pude ver o trajeto
vagaroso de tantos objetos descartados pela nossa sociedade industrial. Notei
também que o assoreamento produzira centralmente uma ilhota, que de terra e
areia alimentava capins diversos. Sobre ela, meio que enroscada, mas de posição
correta e pés fincados, avistei que descansava uma imensa poltrona. Que bom
lugar para ler um livro..., pensei ironicamente, se não fosse aquele sol de
rachar mamonas e estofados.
O mirim busca o açu e é
assim, ao contrário do movimento dos peixes, que procede o sentido dos bens.
Nesse ponto, se me fosse dada uma escolha, queria levar para o conforto da
poltrona a leitura do livro de Ernest Hemingway, O velho e o mar. Tudo porque julgo que somos felizes se conseguimos
envelhecer e vir um dia a pescar em mares de melhor sorte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário